É comum, no meio protestante, nos depararmos com afirmações de que a Igreja proibia a seus fieis leigos o acesso, a posse e a leitura das Escrituras. Segundo eles, antes do Concílio Vaticano II (1962-1965), quem lesse a Bíblia corria, inclusive, o risco de excomunhão. Tendo origem em especulações ainda mais antigas, estas afirmações infundadas foram continuamente repetidas ao longo do tempo, tentando, até hoje, se impor como verdade. Destacamos, para estas considerações desprovidas de fundamento, as seguintes raízes remotas: o temor da Igreja de que os católicos descobrissem a verdade sobre uso de imagens; o ensinamento de uma doutrina contrária à Bíblia; o receio de que os fiéis contestassem a autoridade eclesiástica, caso tivessem acesso às Escrituras. Contudo, nenhuma dessas afirmações resiste a uma análise mais cuidadosa que tenha como base a História da Igreja e de sua relação com as Sagradas Escrituras.
Os protestantes parecem desconhecer que a revelação Divina é anterior à fundação da Igreja e à confecção da Bíblia. Pode-se, inclusive, afirmar que já existia uma “Bíblia oral”, isto é, a transmissão de muitos dos acontecimentos narrados na Bíblia às gerações posteriores através da Tradição Oral, que, somente muito mais tarde, tomaram a forma escrita.
Assim como alguns profetas não puderam relatar por via escrita suas profecias, Abraão não escreveu sua história nem Noé relatou o dilúvio, uma vez que, na época em que viveram, os recursos necessários à produção escrita eram escassos ou talvez inexistentes em suas culturas.
Constata-se semelhante ocorrência com o Novo Testamento: o Evangelho existiu antes dos evangelistas; as Boas Novas, ensinadas por Jesus Cristo, assim como toda a história do surgimento da Igreja, foram escritas tempos depois. O próprio Cristo nada deixou documentado, tendo tudo o que sabemos sobre Ele nos sido dado pelo testemunho dos que a seu lado estiveram. O Testamento de seus discípulos e seguidores, antes de codificados pela escrita, eram igualmente transmitidos pela Tradição Oral. São Paulo, por exemplo, não conheceu o Mestre pessoalmente, mas através de seus seguidores.
A Igreja foi fundada antes da Bíblia, tal como a conhecemos hoje. Havia o Velho Testamento, utilizado nas sinagogas e comumente citado nas pregações de Jesus e dos discípulos, mas a pregação do Evangelho existe desde que Cristo iniciou Sua obra.
Uma vez constatado que o surgimento da Bíblia sucede o da Igreja, conclui-se que esta só pode ter sido a responsável pela constituição da Sagrada Escritura, por ser a única que possuía autoridade para fazê-lo, já que a recebeu do próprio Cristo (Mt 16, 13-19) e, usando de sua autoridade, definiu o Cânon Bíblico tão logo foi possível. Portanto, é a Bíblia que está sob a autoridade da Igreja, e não o contrário. Foi a Igreja que selecionou e afirmou: este livro é Sagrado, já este outro não o é. Portanto, é a Igreja que diz o que é Bíblia. Se na Bíblia existe a definição do que é Igreja, e se foi a Igreja que disse que o Livro chamado Bíblia é Sagrado, então a definição de Igreja contida na Bíblia é a definição da própria Igreja.
O Cânon Bíblico é composto pelo conjunto de livros sagrados que foram considerados pela Santa Igreja como livros inspirados por Deus, inerrantes e infalíveis. Ele se divide em protocanônicos e deuterocanônicos. Os protocanônicos são assim chamados por terem sido os primeiros a ser selecionados, não havendo sobre eles nenhuma controvérsia no que se refere à sua canonicidade. Já os deuterocanônicos fazem parte de uma segunda seleção, após algumas controvérsias principalmente entre os judeus, que tinham seus critérios de seleção.
Dom Estevão Bettencourt afirma que, nos escritos patrísticos, os deuterocanônicos são citados como Escritura Sagrada, pois São Clemente Romano já os citava em 95 e Hipólito em 235 tece comentários ao livro de Daniel, incluindo os fragmentos deuterocanônicos.
Ainda segundo Dom Estevão, entre os séculos II e IV algumas dúvidas surgiram entre os cristãos sobre a canonicidade destes livros, devido à controvérsia entre os judeus, que temiam que os livros do NT fossem considerados canônicos e, na tentativa de evitar que isto ocorresse, criaram novos parâmetros de julgamento, como por exemplo, excluir os livros escritos em grego e aramaico. Por conta destes critérios, alguns livros do VT foram considerados não canônicos tanto por judeus quanto por alguns cristãos que adotaram seus critérios.
Porem, em que pese tais controvérsias fato é que a Igreja, com toda a autoridade dada por Jesus Cristo, os considerou canônicos e a Bíblia Sagrada é composta tanto pelos protocanônicos como pelos deuterocanônicos. Sua canonicidade foi ratificada pelos vários Concílios: Concílios Regionais de Hipona (393), Cartago III (397), Cartago IV (419), Trullos (692). Tais definições foram mantidas nos Concílios Ecumênicos de Florença (1442), Trento (1546), Concìlio Vaticano I e o Concílio Vaticano II (1962-1965) também não os rejeitou.
Tal série de inverdades, que com o passar do tempo deu origem às muitas outras mentiras que ouvimos no meio protestante, teve início, principalmente, com a Reforma Protestante. Entre estas, incluímos desde a afirmação de que a Igreja anexou os 7 livros ‘’apócrifos’’ (é através desta nomenclatura que a maioria dos protestantes se referem aos deuterocanônicos) no Concílio de Trento para justificar falsas doutrinas, principalmente a oração pelos mortos, a doutrina do purgatório e o culto aos Santos.
No entanto, a verdade é que eles protestaram contra os livros deuterocanônicos porque neles se encontram vários textos que contrariam suas doutrinas. Lutero almejava, inclusive, a retirada do Livro de São Thiago da Bíblia, porque nele se afirma que a fé sem obras é morta e este pequeno-grande detalhe atrapalhava sua doutrina de sola fide (somente a fé salva).
A verdade é que a Igreja jamais desejou tornar a Biblia desconhecida ou inacessível aos seus fiéis leigos, tanto que a compôs e a traduziu para as línguas predominantes em diferentes épocas, como o faz até hoje. Se em algum tempo da História da Igreja houve restrições à leitura dos Livros Sagrados, tais restrições são conseqüências de mau uso e de traduções duvidosas feitas pelos hereges em épocas distintas. Vejamos os fatos como de fato ocorreram.
Segundo nos ensina Dom Estevão Bettencourt em seu Curso Bíblico, a Bíblia foi escrita em três idiomas: o hebraico (protocanônicos), o aramaico (alguns fragmentos de Esdras, Daniel e o livro original de São Mateus, que se extraviou) e grego (Sabedoria, I e II Macabeus, Judite, Tobias, alguns fragmentos de Daniel e de Ester). Ainda, de acordo com o autor, o texto do Eclesiástico apresenta-se como tradução grega do original em hebraico, que, por também se ter extraviado, deixou ao texto grego a autoridade de oficialmente canônico.
Antes da Bíblia ser traduzida para o latim por São Jerônimo, havia a Septuaginta e várias traduções livres para esta língua. Tendo havido um grande número destas, por vezes acabava-se confundindo e despertando dúvidas quanto à sua fidelidade aos originais. Foi, portanto, a partir de uma necessidade de unicidade que o Papa São Dâmaso (séc. IV) confiou a São Jerônimo a missão de, através de uma revisão destas traduções livres, fazer uma compilação de todos os Livros Sagrados, formando o que hoje conhecemos como Bíblia Sagrada.
Esta versão, sabidamente a base de todas as traduções posteriores, ficou conhecida como Vulgata Latina, tendo sido amplamente utilizada pelos cristãos católicos até o Concílio Vaticano II.
Pode-se perceber, portanto, desde os tempos mais remotos, o cuidado que a Igreja demonstra com a Palavra de Deus. Um Papa, no século IV, apesar de todas as tribulações que a Igreja enfrentava na época, como, por exemplo, a ameaça dos Bárbaros sobre Roma, tinha a preocupação de dar a seus fiéis uma Bíblia que apresentasse a maior fidelidade possível aos textos originais.
Sendo assim, por que insistem os protestantes em difamar a Santa Igreja, lançando sobre ela mentiras infames, afirmando que sempre dificultou aos católicos a leitura das Sagradas Escrituras?
A recomendação da leitura da Bíblia provém de tempos anteriores à Igreja. Jesus Cristo, fundador e Cabeça da Igreja, já a recomendava em suas pregações, num tempo em que havia somente o Antigo Testamento, utilizado por Ele e posteriormente por seus discípulos. Portanto, todos os que escreveram o Novo Testamento tiveram como fonte o Antigo e as Tradições. Seguindo a recomendação do próprio Cristo, seus seguidores guardaram as Tradições e a transmitiram, primeiramente, pela via oral e, somente mais tarde, por escrito.
Na verdade, assim como sempre houve uma preocupação na divulgação das Escrituras, houve também a necessidade de protegê-la dos que dela faziam mau uso.
É fato que as heresias surgiram antes mesmo da fundação da Igreja, e Cristo, em suas pregações, já nos alertava contra os falsos profetas e contra as falsas doutrinas, que até hoje são verdadeiras ameaças à fé dos fiéis despreparados. Por conta de inúmeras delas, a Igreja teve que tomar atitudes a fim de resguardar as verdades que o Senhor lhe confiou. Entre algumas destas atitudes, citamos o cuidado com a leitura e a interpretação do Livro Sagrado, já que muitas destas heresias se apoiavam nos textos bíblicos que, tomados isoladamente, eram usados para disseminar concepções errôneas que punham em risco a salvação do povo de Deus.
Os cátaros é um dos exemplos que ilustra bem o perigo da livre interpretação. Num breve resumo, eram dualistas, pregavam o total afastamento do mundo material e, em contradição com o que a Igreja ensinava, afirmavam que o mundo material é mau, em flagrante contradição com as Escrituras que afirmam que tudo o que Deus criou é bom.(Gn 1, 1-25).
Estas e outras heresias disseminadas por eles não ficaram sem a devida resposta da Igreja. O mal que causaram foi de tal forma desastroso que a Igreja, reunida no Concílio de Tolosa, na França (1229), proibiu o uso das traduções vernáculas da Bíblia. Porém, tal proibição foi retirada pelo Concílio de Terragona em 1233, isto é, em menos de cinco anos.
A proibição, como é fácil constatar, tem objetivo nobre: proteger os fiéis das falsas doutrinas e não para lhes negar o conhecimento da Palavra de Deus. Analisando os fatos no contexto em que ocorreram, fica claro que a liberdade de leitura das traduções fora do ambiente da Igreja favorecia em muito a divulgação de heresias e em nada contribuíam para a formação dos fiéis.
A heresia Valdense, da mesma forma, utilizou textos bíblicos para negar as verdades da fé católica. A partir de traduções clandestinas, faziam apologia ao livre exame das Escrituras, disseminando a dúvida sobre o culto aos santos, o purgatório, os Sacramentos (só aceitavam três deles: Batismo, Penitência e Eucaristia), entre outras, além de proibir aos seus seguidores de prestarem o serviço militar.
Um pouco antes da Reforma, John Wiclif (séc. XIV), afirmava que a única tradução confiável da Bíblia era a traduzida para o Inglês. Este herege, que é considerado pelos protestantes a vanguarda da Reforma, fez, a partir do livre exame da Bíblia, interpretações esdrúxulas nas quais afirmava que o Papa não tinha nenhuma autoridade. Além disso, negava o Sacramento da Penitência, não acreditava na presença real de Cristo na Eucaristia e tecia duras críticas ao culto aos Santos. A resposta da Igreja lhe foi dada no Sínodo de Oxford (1408), que proibiu a leitura dessas traduções e de outras de origem duvidosa.
Com a Reforma Protestante, a situação ficou ainda mais crítica. Lutero e os reformadores que o seguiram proclamaram como verdade de fé, entre outros, o sola scriptura, que coloca a Bíblia como única fonte confiável das verdades reveladas por Deus. O que não estava na Bíblia não era verdade de fé. Exortava o povo de Deus a fazer livre exame e interpretação da Escritura, deixando a cada um a tarefa de se instruir.
A partir deste evento, surgiram diversas traduções da Bíblia, cada uma interpretando a Palavra de acordo com a doutrina de suas várias denominações. As doutrinas Calvinistas, por exemplo, davam ênfase aos versículos ou textos inteiros que, segundo eles, fundamentavam a doutrina da Predestinação Absoluta. Para tanto, recorriam inclusive aos textos de Santo Agostinho, distorcendo-lhes o sentido em interpretações heréticas.
A Igreja não poderia ter outra atitude senão a de proibir que tais traduções fossem lidas por seu rebanho. O verdadeiro Pastor cuida das ovelhas, e a Igreja tão somente obedeceu a Jesus Cristo. Tratou de apascentar suas ovelhas (Jo 21,17) e, para tanto, convocou o Concílio de Trento (1544-1547, 1551-1552, 1562-1563).
Neste Concílio, algumas decisões importantes foram tomadas, entre elas destacam-se:
- A única tradução que não continha erros teológicos era a Vulgata Latina de São Jerônimo;
- Cabia à Igreja a tarefa de interpretação da Bíblia, através de seu Magistério;
- Bíblias ou textos bíblicos sem nome de autor e sem autorização do Bispo diocesano estavam proibidos;
O Concílio de Trento também ratificou o Cânon Bíblico, incluindo os livros deuterocanônicos.
Portanto, fica assim explícito que a Igreja, em tempo algum, proibiu a seus fiéis que lessem a Bíblia, mas proibiu, e com razão muito justificada, que seu rebanho, deixado ao seu cuidado por Cristo, lesse os livros traduzidos e interpretados pelos hereges em épocas distintas e por motivos incontestáveis.
A Igreja é a nossa Mãe. É ela que, nesses mais de dois mil anos, nos orienta para que possamos alcançar as promessas de Cristo. Atualmente, há mais de 40 mil denominações protestantes, cada qual fazendo traduções das Escrituras e as interpretando segundo suas doutrinas. Como conseqüência, temos as aberrações que deram origem às várias “teologias”, entre as quais citamos a Teologia da Libertação e a Teologia da Prosperidade, ambas condenadas pela Santa Mãe Igreja. A resposta da Igreja a estas e outras heresias modernas é sempre a mesma: somente a Igreja tem autoridade para interpretar o livro que ela mesmo formou. Doutrina Cristã se aprende com a Igreja através de seu Santo Magistério. A Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica ,verdade que nós católicos sempre soubemos e que foi mais uma vez reafirmada pelo Santo Padre o Papa Bento XVI .(Comentário às respostas a questões relativas a alguns aspectos da Doutrina sobre a Igreja- Congregação Para a Doutrina da Fé).
Bibliografia:
BETTENCOURT, Dom Estevão Tavares (O.S.B), História da Igreja – Mater Ecclesiae
________________________________________ Curso Bíblico – Mater Ecclesiae
Biblia Sagrada – Edição Ave-Maria
Site do Vaticano:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20070629_commento-responsa_po.html
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